Seus corpos se debatiam num só suspiro de amor e puro
prazer. Impossível conter os sussurros arrancados
da alma. Seus corpos molhados despejavam a mais pura cumplicidade. Ali era o
seu lugar. Nada havia que pudesse impedi-los de se possuírem naquela noite
calma de outono. Quem os deteria? E...por que o fariam? Não havia pecado, mas
amor; não havia medos, mas ousadia; não havia ressentimentos, só entrega. E
assim ficaram, a ornar a noite escura, na sua cama, no seu quarto, entre
suspiros e gemidos loucos até o dia quase amanhecer. E depois do gozo, o último
grito exalando cansaço e satisfação.
De repente, um comentário solto, cruel e intruso, sem
dúvidas, invadiu aquele quarto ainda
imerso em alegrias mal contidas. De um salto, ela se pôs de pé. Ouvira bem? Era
possível? A quem aquela voz se dirigia?
Quem era a “vagabunda” à qual se referia? De onde vinham a gratuitas ofensas?
Acenderam a luz. Uma sombra mal disfarçada, escutava, fortuitamente, seus
gritos abafados. Alguém que, com certeza, não conseguia dormir e, por certo,
sentiu-se incomodada com o seu desvario.
Sentiu vergonha. Puxou a coberta e protegeu-se como se tivesse cometido um pecado. Seu corpo tremia,
mas não mais de prazer. Havia uma vergonha incontrolável em si. Perguntava-se
porque, mas não saberia responder. Que pecado cometera em amar o marido com a
mesma intensidade de quando tinha ainda o viço dos 20? Levantou-se devagar,
contendo as lágrimas acanhadas. Nada
continha sua vergonha. Fora “descoberta” em pleno gozo do pecado, alguém
escutara seus suspiros de amor e prazer. Não poderia haver ali espaço para
ninguém. Deixou-se mergulhar num longo
banho morno, confortada pelo companheiro sempre presente. Foi-se acalmando
devagar...
O sono a abandonara. Sabia que no dia seguinte seria alvo de
chacotas e maledicências. Teria que suportar olhares intrusos, comentários
loucos, talvez até um mais ousado lhe pedisse uma chance também. Não suportava
imaginar tais interpelações. Queria, simplesmente, sumir dali. O marido, já
exausto àquela altura já desistira de convencê-la do óbvio: eram um casal,
pagavam suas contas, não tinham que dar satisfação e, como todo homem, ignorou o fato e dormiu.
Ela ainda arquitetava como olharia para a vizinha intrusa e
pouco discreta que, com certeza, espalharia a notícia bombástica: “a vizinha do
302 transava com o marido aos gritos. Um horror!”. O que faria então, quando o
sol voltasse? Vestiria que roupa? Como reagiria diante das investidas maldosas.
Se estivesse apanhando do marido, se houvesse uma forte discussão quando
verdades ocultas estivessem sendo reveladas, seria mais fácil! As vizinhas
seriam solidárias na sua dor, mas não! Aquela senhora ( e talvez outras!) fora
despertada pelos seus gemidos de amor e
um amor assim escancarado, ousado, livre e real ninguém suporta. Ouvir alguém
brigando é mais fácil, os corações se apiedam, fazem - se solidários, mas se há
gritos de amor, é uma indecência,
ousadia, pecado! Isso poucos suportam.
As horas foram passando e não conseguia conciliar o sono. O
peso da vergonha era enorme. Vergonha. Essa palavra a corroia. Vivia num mundo
onde fazer amor incomoda, mas uma briga de casal encanta. Talvez porque seja
mais fácil contemplar a dor do outro como forma de esquecer as suas próprias.
“A outra é mais infeliz que eu. Coitada!”- “Viu? O marido bate nela! Coitada!”-
. E o que diriam dela? “Já tem filhos adultos, casados e ainda faz amor com seu
homem , e aos gritos! Vagabunda!” Como
assim...vagabunda?! Levantou-se, contemplou-se no espelho. Viu uma mulher
madura, com pingos brancos que eram escondidos semanalmente, um corpo já desajeitado
pelo tempo, mas ainda capaz de amar e muito amada. Como assim: Vagabunda?! Ela
estava acordada, amando intensa e loucamente o seu homem, a quem jurou amor
eterno. Voltou para a cama. Adormeceu.
O dia amanheceu chuvoso, meio frio. Ele já estava de pé.
Como sempre, cuidava do café da manhã. Ela se arrumava com esmero e cuidado.
Pusera um vestido que a deixava mais jovial, com flores leves e um tanto
decotado para o dia, mas coerente com seu estado de alma. Sentaram-se em silêncio, comentaram
sobre o dia que chegava. Saíram, como sempre, de mãos dadas.
Do lado de fora, na janela, com olhar duro e maldoso, a
intrusa os olhava imperativa. Sua revolta quase gritava tanto quanto os seus
gritos de amor da noite anterior. Ela
parou. Olhou-a suavemente. Houve, por um breve momento entre os olhares um duelo silencioso. Ela já
não conseguia sentir vergonha. Não poderia se envergonhar por ainda ser tão
amada. Sorriu jovialmente, entrou no carro e se foi para mais um dia de
trabalho. O dia amanheceu em paz.
Rozana Pires
18/05/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário