sábado, 18 de maio de 2013

A INTRUSA - UM CONTO




Seus corpos se debatiam num só suspiro de amor e puro prazer. Impossível conter os sussurros  arrancados da alma. Seus corpos molhados despejavam a mais pura cumplicidade. Ali era o seu lugar. Nada havia que pudesse impedi-los de se possuírem naquela noite calma de outono. Quem os deteria? E...por que o fariam? Não havia pecado, mas amor; não havia medos, mas ousadia; não havia ressentimentos, só entrega. E assim ficaram, a ornar a noite escura, na sua cama, no seu quarto, entre suspiros e gemidos loucos até o dia quase amanhecer. E depois do gozo, o último grito exalando cansaço e satisfação.
De repente, um comentário solto, cruel e intruso, sem dúvidas, invadiu  aquele quarto ainda imerso em alegrias mal contidas. De um salto, ela se pôs de pé. Ouvira bem? Era possível? A quem aquela voz  se dirigia? Quem era a “vagabunda” à qual se referia? De onde vinham a gratuitas ofensas? Acenderam a luz. Uma sombra mal disfarçada, escutava, fortuitamente, seus gritos abafados. Alguém que, com certeza, não conseguia dormir e, por certo, sentiu-se incomodada com  o seu desvario. Sentiu vergonha. Puxou a coberta e protegeu-se como se  tivesse cometido um pecado. Seu corpo tremia, mas não mais de prazer. Havia uma vergonha incontrolável em si. Perguntava-se porque, mas não saberia responder. Que pecado cometera em amar o marido com a mesma intensidade de quando tinha ainda o viço dos 20? Levantou-se devagar, contendo as lágrimas acanhadas. Nada  continha sua vergonha. Fora “descoberta” em pleno gozo do pecado, alguém escutara seus suspiros de amor e prazer. Não poderia haver ali espaço para ninguém.  Deixou-se mergulhar num longo banho morno, confortada pelo companheiro sempre presente. Foi-se acalmando devagar...
O sono a abandonara. Sabia que no dia seguinte seria alvo de chacotas e maledicências. Teria que suportar olhares intrusos, comentários loucos, talvez até um mais ousado lhe pedisse uma chance também. Não suportava imaginar tais interpelações. Queria, simplesmente, sumir dali. O marido, já exausto àquela altura já desistira de convencê-la do óbvio: eram um casal, pagavam suas contas, não tinham que dar satisfação  e, como todo homem, ignorou o fato e dormiu.
Ela ainda arquitetava como olharia para a vizinha intrusa e pouco discreta que, com certeza, espalharia a notícia bombástica: “a vizinha do 302 transava com o marido aos gritos. Um horror!”. O que faria então, quando o sol voltasse? Vestiria que roupa? Como reagiria diante das investidas maldosas. Se estivesse apanhando do marido, se houvesse uma forte discussão quando verdades ocultas estivessem sendo reveladas, seria mais fácil! As vizinhas seriam solidárias na sua dor, mas não! Aquela senhora ( e talvez outras!) fora despertada  pelos seus gemidos de amor e um amor assim escancarado, ousado, livre e real ninguém suporta. Ouvir alguém brigando é mais fácil, os corações se apiedam, fazem - se solidários, mas se há gritos de amor, é uma  indecência, ousadia, pecado!  Isso poucos suportam.
As horas foram passando e não conseguia conciliar o sono. O peso da vergonha era enorme. Vergonha. Essa palavra a corroia. Vivia num mundo onde fazer amor incomoda, mas uma briga de casal encanta. Talvez porque seja mais fácil contemplar a dor do outro como forma de esquecer as suas próprias. “A outra é mais infeliz que eu. Coitada!”- “Viu? O marido bate nela! Coitada!”- . E o que diriam dela? “Já tem filhos adultos, casados e ainda faz amor com seu homem , e aos gritos!  Vagabunda!” Como assim...vagabunda?! Levantou-se, contemplou-se no espelho. Viu uma mulher madura, com pingos brancos que eram escondidos semanalmente, um corpo já desajeitado pelo tempo, mas ainda capaz de amar e muito amada. Como assim: Vagabunda?! Ela estava acordada, amando intensa e loucamente o seu homem, a quem jurou amor eterno. Voltou para a cama. Adormeceu.
O dia amanheceu chuvoso, meio frio. Ele já estava de pé. Como sempre, cuidava do café da manhã. Ela se arrumava com esmero e cuidado. Pusera um vestido que a deixava mais jovial, com flores leves e um tanto decotado para o dia, mas coerente com seu estado de  alma. Sentaram-se em silêncio, comentaram sobre o dia que chegava. Saíram, como sempre, de mãos dadas.
Do lado de fora, na janela, com olhar duro e maldoso, a intrusa os olhava imperativa. Sua revolta quase gritava tanto quanto os seus gritos de amor da noite  anterior. Ela parou. Olhou-a suavemente. Houve, por um breve momento entre os olhares um duelo silencioso. Ela já não conseguia sentir vergonha. Não poderia se envergonhar por ainda ser tão amada. Sorriu jovialmente, entrou no carro e se foi para mais um dia de trabalho. O dia amanheceu em paz.
                                                              Rozana Pires
                                                              18/05/2013    

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